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AO AMIGO QUE PERDEU A COMPANHEIRA
Dedicatória:
Ao António Galhardo e todos quantos vivem, viveram, ou viverão, a mágoa intraduzível da perda de metade de suas próprias almas e confiam, na luz da Eternidade, colher o bálsamo para suavizarem a vida na desventura da  solitária caminhada.

Acaso alguém saberá a palavra exacta para sofrear a dor na morte de um ente querido?
Nunca me senti tão exaurido no verbo, neste infinito vazio de nada saber balbuciar para além das vulgaríssimas palavras de ocasião, no momento em que uma lágrima, um abraço forte e a crença no Além valem por todas as  palavras imagináveis.
Embora a sentisses definhar, hora a hora , o corpo agonizante , a luz dos olhos quebradiça e a vida esvaindo-se em perpétuo declínio, a cada segundo se pode recriar a eternidade e nela semear um luzeiro de crença, até ao momento em que o peito arqueja os penúltimos  suspiros.
Somos assim, até ao minuto derradeiro - porque é assim a condição da nossa própria sobrevivência - prosseguir nesta força secreta que nos resgata dos escombros do nosso padecer e nos leva a prosseguir a vida, neste impulso misterioso, que se reconstrói, em nós e para além de nós, ao qual apelidamos de esperança.
Quem usufruir desta misteriosa virtude, arrostará com os suplícios da vida, porque em seu espírito se reacenderá um lampejo de ânimo que sublimará a aridez do momento.

A luz que agora ilumina as fotos risonhas, pendentes da parede da sala, os pequenos objectos onde ela poisou as mãos em vida, as recordações, por mais ínfimas, são invadidas pela  penumbra da tua mágoa, semeada por todos os recantos do teu sentir, onde gravitam as infindáveis doridas memórias de tua amada.
Nenhuma luz poderá iluminar a dor intransmissível de quem perdeu parte de si. Quer queiramos quer não, apenas somos de facto, a valer, quando amamos e somos amados , porque ninguém se pode evadir aos ditames do amor que fecunda a  perpetuidade da vida.
Insignificantes que somos, perante a morte do ser amado, a alma esvazia-se até ao ponto em que nos sentimos  menos insignificantes que o nosso próprio nada, porque a dor avassala e supera a nossa fragilidade de suportar a vida a sós, naquela solidão tentacular - do adeus sem retorno à  terra - que arrocha a alma num quase sufoco.

Na derradeira partida, a saudade torna a pessoa amada maior que a própria vida. Por isso, nada nesta desventurada terra apaziguará tua alma dorida, para além da crença de a saberes num lugar de imensa serenidade que, porventura, nem tua imaginação saberá idealizar.
Neste momento dorido, em que os outros não poderão sequer vislumbrar a escuridão que te fustiga e varre a alma,  permite-me,  em jeito de quem estende a mão a um náufrago - porque náufragos somos todos - que te  convide a adejar nas asas do sonho por aquelas regiões do espírito onde apenas a crença permite vislumbrar a ponta do misterioso véu.

Se acreditares na eternidade, podes imaginar a teu bel-prazer este cenário: um eflúvio de luz florido, adornado por açucenas e lírios siderais, num abrigo plácido e sereníssimo onde entoam cânticos de águas fosforescentes em todas as tonalidades do arco-íris sob a sinfonia magistral de uma legião de querubins.

A alma de tua amada evolou-se, num feixe de luz níveo, corpóreo, translúcido, enramado num azul suavíssimo que cicia ternamente num sopro de vento a ventura sublime no seio da Infinita Luz, adejando entre inefáveis lírios de indizíveis fragâncias, num clavicórdio celestial de sons entrelaçados numa sinfonia de orquídeas e açucenas siderais.
As estrelas passaram a ser a sua morada e um círculo de luz velará por ti e pela essência da ternura que em vida lhe concedeste.

Mas, se nem a imaginação deste lugar etéreo idealizado contiver a tua dor, pensa que todos estamos a dias dos nossos queridos, sim, porque uma vida medida no tempo infinito equivale a  um suspiro prolongado, assim como quem risca um fósforo na negridão da noite.
E ainda que nada enxerguemos, para além do vísivel, haverá o silêncio eterno sem mágoas, nem lamúrias, sem dores nem  tormentos. Sobre este silêncio, creio, encobre-se a magnífica sabedoria que presidiu à criação do mundo. Talvez, toda a nossa fadiga nesta desventurada terra seja apenas um intervalo entre dois silêncios.
Só Deus poderá saber para aquém e além tempo do tempo em que não éramos (ou será que sempre fomos?) e do tempo em que na terra não mais seremos.
Que a tua fé seja a sarça ardente com que alumiarás a tua dor, até que o tempo misericordioso que sereniza a dor e mitiga  as chagas, te desanuvie a alma dorida num sonho tangível, mavioso, de beatífica serenidade.
E que tua amada te acene, confirmando, lá do Infinito, num terno sorriso de suavíssima luz, que, afinal, o Amor tal como Deus são ambos eternos.

                                                                                   Barbosa Tavares

                       Brampton, Ont. Setembro, 2002
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