LAVRAS 343

Este era o endereço dos sonhos de duas distintas gerações. Era uma casa imponente, bem localizada, situada no coração do antigo Carmo Sion. Terminando na subida do Marista, ela reinava absoluta. A sua força cênica era tão forte, que mesmo hoje, passados tantos anos de sua demolição, a gente ainda consegue visualizá-la, mentalmente, sem muito esforço. O portãozinho de entrada que fazia aquele barulhinho característico que a gente ouvia lá de dentro, adivinhando que vinha gente. Ali, bem do lado da caixinha do correio, onde muitas vezes a gente enfiava os objetos mais estranhos, fingindo ser uma espécie de esconderijo, havia um caminho estreito entre o jardim e o muro da frente que a criançada usava como passagem para a rampa da garagem ou mesmo como local para brincar de esconde-esconde. Dali a gente alcançava uma grade pela qual os mais afoitos se dependuravam e chegavam até o portão de madeira em treliça, que dava acesso à garagem da casa. Na verdade nunca havia um automóvel sequer por ali, só mesmo a meninada fazendo traquinagem. Voltando ao portãozinho, dali havia alguns degraus que nos levavam ao alpendre da casa. Alpendre é mesmo uma palavrinha bem mineira, né? Acho que só escutei este termo pelas bandas das Minas Gerais, mas que é bem chique, isto é. Eu sempre achei o máximo. No "allllpendre" (hehehe) havia aquelas três cadeiras de ferro de duas cores cada, misturando branco com amarelo, verde e vermelho. Lá a Cath namorava, os avós tomavam um solzinho, as visitas ficavam um tiquinho nos dias mais quentes, e a netarada se reunia pra brincar de "... o primeiro carro que passar é o meu". Não sei que graça tinha isto de ficar esperando os carros passarem e pela ordem estabelecida no início do jogo nos julgarmos proprietários dos mesmos, mas passávamos horas a fio nesta coisa.

A casa da Lavras das minhas lembranças, já era pouco habitada, a maioria dos tios já estava casada. Nós éramos a sua população flutuante mais freqüente. Os meses de dezembro, janeiro e fevereiro eram todos nossos. Julho também. Éramos cadeira cativa nestas épocas. E havia também as temporadas operatórias de papai. Aí não tinha data certa. Foi assim com os diversos cálculos renais culminando com a retirada de um dos rins; a tireóide; a hérnia; a úlcera; etc...Rodin Frankestein, todo remendado.

Seguindo pela lateral externa à direita da casa a gente ia dar numa espécie de jardim com um pequeno coqueiro da Bahia anão, meio que encruado, que era um deleite. A gente pegava a ponta da longa e fina folha do bichinho e ia desfiando ao longo da haste central, até transformá-la em três, achando que estava fazendo um benefício à natureza. No final do jardim havia outro portão em treliça que dava para os fundos. Dali em diante podia ser considerado o quintal da casa que ficava um patamar acima do nível da construção principal. Tinha pé de laranja, carambola, abacate, jatobá, unha de vaca, e até um guapurubu, seja lá o que isto for, mas o que mais chamava a atenção da gente era a amoreira, que ficava bem em cima de um tanquezinho que a gente às vezes improvisava em piscininha. Este quintal era palco dos nossos teatrinhos e aventuras infantis. Cavoucávamos o chão de terra, em busca dos tatuzinhos, aqueles pequenos bichinhos que ao menor toque, se enroscavam em bolinhas. Julgando-se protegidos eles nos davam a oportunidade de um piparote fenomenal que os lançavam sabe Deus aonde. Pobrezinhos, paradinhos ali, parecendo um cocozinho, não tinham a menor chance. Bem no fundo do terreno ficavam a área de serviço, onde reinava a lavadeira da casa; as dependências dos empregados e o misterioso cômodo proibido para menores, onde funcionava o ateliê de vovô. A gente bem que tentava espiar, nas pontas dos pés, pescoço espichado, cara colada na embaçada vidraça da janela, mas o máximo que conseguíamos era divisar vultos dos bustos, telas e uma parafernália de objetos espalhados sobre mesas e prateleiras. Dava um certo frio na barriga sempre que nos aventurávamos por lá.

A casa da Lavras, em nossas férias, tornava-se também o paraíso dos primos vizinhos, filhos do tio Luciano. Eles sempre apareciam para pegar a rebarba da sobremesa, que invariavelmente consistia em goiabada com queijo. As refeições desta época tinham um sabor especial. No café da manhã, pão quentinho servido com manteiga, com a permissão de se cometer a "cabecinha de Fanny" sem ser punido, já que era um hábito antigo na família. Nós ficávamos boquiabertos, admirando a tia Catharina fatiar a manteiga e se fartar dela em pedaços, como se fosse queijo. Impressionante. O almoço era servido em dois ambientes. Os adultos na sala maior na mesa grande com cadeiras de espaldar alto, de madeira forrada em couro. A criançada na salinha menor, também usada nos jogos de buraco dos adultos, fazia a sua festa particular. Arroz, feijão, bife, muita batata frita, regados com laranjada. Pra quê mais? O melhor é que não tinha que comer verduras ou legumes, estas coisas odiadas pelas crianças. Quando o almoço terminava, a gente podia chegar até a sala de jantar, para ficar ouvindo aquela conversinha em volta da mesa, junto dos adultos. O vovô chamava as suas macaquinhas para perto dele, e com aquele cheirinho gostoso de loção pós-barba, e seu casaco listrado, de usar em casa, nos abraçava e nos mostrava o seu truque preferido. Ele nos fazia cruzar os dedos e passar sobre a superfície das pequenas bolinhas que ele fazia com o miolo do pão, dando-nos a sensação mágica e divertida de haver ali embaixo duas bolinhas em vez de uma.

Foi ele, o meu avô, quem comprou a minha primeira calcinha higiênica Serena e o meu primeiro pacote de Modess. Numa das ausências da minha mãe, com certeza de plantão em algum hospital, junto do meu pai, sobrou para os avós cuidar da menarca da neta mais velha. Uma situação insólita com certeza, principalmente levando-se em conta os meus faniquitos de adolescente. Aos 11 anos, eu não era bem o tipo de adolescente problemática, mas era um bocado escandalosa e divertida, reconheço.

Havia várias formas de diversão na nossa temporada na Lavras. Uma delas era acompanhar a faxina da tia Catharina nos seus armários. Aquilo era praticamente um ritual. Ela ia despencando aquela tralha em cima da gente e tudo aquilo que ela não queria mais, na maioria das vezes, ia parar em nossa bagagem. A Cris, na época aspirante a Catharina-II, ficava ali parada, olhinhos vidrados em todas aquelas quinquilharias, que poderiam vir a se tornar acervo seu. Confesso, que com minha persistente rinite não achava muita graça naquilo e ficava mais interessada nas piadas e histórias que ela contava de noite no quarto dela. Outra peça do nosso playground lavrense era a escada que ligava o térreo ao andar de cima. Ela consistia em dois vãos sendo que o maior ficava em linha reta. Nós escorregávamos sentados de cima a baixo indo parar próximos à TV. Fazíamos isto até a bunda ficar formigando. Era também nos degraus da escada, que nos empoleirávamos para assistir aos programas de TV da época ou para ouvirmos a conversa fiada dos tios e avós.

Tudo ali tinha a sua magia e o seu encanto, em uma época inesquecível de nossas vidas. As risadas, as missas na Igreja do Carmo, a jogatina e as piadas, o meu sonambulismo que assustava alguns e divertia outros, a convivência com os primos, as brincadeiras, até os momentos de tristeza causados pelas perdas ou momentos aflitivos, todas estas lembranças nos cutucam e se esbarram dentro da gente nos forçando sempre a revivê-las mentalmente botando um gosto de nostalgia na alma e uma sensação confortável de bem-viver. Afinal a vida é isto, um pouco disto e daquilo; recheada de senões e talvez, mas que quando bem vivida nos faz dar de ombros e ansiar por mais, muito mais.


8 de setembro de 2002

volta

mas antes de voltar, continua...